sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O Caso Battisti: Direito ou Ideologia?



Cesare Battisti foi condenado à prisão perpétua pela Justiça italiana por sua participação em atos terroristas ocorridos entre os anos de 1977 e 1979, mais precisamente, pelo planejamento e homicídio de quatro pessoas. Ele liderava um grupo de extrema esquerda, denominado Proletários Armados pelo Comunismo (PAC). Após ter sua condição de refugiado revogada pelo governo francês de Jacques Chirac, Battisti fugiu para o Brasil, onde foi preso em 2007. No dia 31 de dezembro de 2010, após longo processo judicial, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva decidiu não extraditar o réu, à revelia da decisão do Supremo Tribunal Federal. Neste artigo, buscaremos analisar esse evento à luz do Direito Internacional, no que se refere à condição jurídica do estrangeiro.

Primeiramente, devemos esclarece alguns conceitos básicos essenciais ao processo de Battisti. Em 2009, o ministro Tarso Genro concedeu a condição de refugiado ao réu, o que obstou sua extradição. Mas quais são as condições para que um indivíduo seja considerado refugiado político? Segundo a lei N. 9.474, que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1957, o refúgio é concedido ao estrangeiro que sofre perseguições ou que possua fundado receio de sofrê-las. Essas perseguições podem ser de caráter racial, religiosa, nacional ou por opiniões políticas. É importante ressaltar que o Estatuto dos Refugiados visava inicialmente a proteção dos refugiados após a II Guerra Mundial. Seu conteúdo é inspirado nas violações aos direitos humanos praticados por regimes totalitários e, por isso, tem como objetivo proteger os grupos perseguidos. Sendo assim, o refúgio se caracteriza por estar sujeito a convenções e organismos internacionais, sendo verdadeiro instituto universal e apolítico. Ele é concedido em conseqüência de atos generalizados de perseguição a todas as pessoas que se enquadram nas situações contidas em lei.

No Brasil, compete ao Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão atrelado ao Ministério da Justiça, a concessão em primeira instância do estado de refugiado. Ele também pode declarar a cessação ou perda do estado de refugiado, caso as condições que levaram ao seu deferimento não existam mais ou seus fundamentos forem falsos. No caso Battisti, o CONARE foi contra a concessão do refúgio.

Há ainda outra condição, a do asilo político, que é concedida ao estrangeiro que sofre perseguição por dissidência política ou delitos de opinião. Como alude Francisco Rezek, o objeto da afronta não é um crime penal universalmente reconhecido no direito penal comum, mas uma forma de autoridade assentada sobre ideologia (REZEK, J. F. Direito Internacional Público: curso elementar . São Paulo: Saraiva, p. 219). Ou seja, o asilo é concedido quando alguém é perseguido por crimes ou razões que somente são relevados em seu país, pois se fundamentam em convicções políticas. Não é o caso do homicídio, por exemplo, que é crime segundo o direito comum. O asilo político é concedido de forma soberana, sendo independente de qualquer organismo internacional. Sua intenção é proteger uma pessoa, individualizada, que esteja sendo perseguida em seu país de origem. Ao contrário do refúgio, que é um ato vinculado, ou seja, sua concessão está atrelada aos casos previstos em lei, o asilo é ato discricionário, sendo a sua concessão uma decisão soberana.

Uma vez esclarecidos esses conceitos, pode-se compreender o motivo do indeferimento da condição de refugiado e da decisão do STF de extraditar Battisti. Ele não estava sendo perseguido por suas convicções políticas, mas por crimes comuns (homicídios) cometidos durante a vigência de um regime democrático. No Senado Federal, as Comissões de Relações Exteriores (CRE) e de Direitos Humanos (CDH), já haviam entendido pela impossibilidade de concessão de refúgio político ao réu. Os crimes de Battisti não se enquadrariam na condição de crimes políticos, já que a Justiça italiana não se encontrava sob um regime de exceção na época de sua condenação. Além disso, em 2006, a Corte Européia de Direitos Humanos ratificou a decisão do Poder Judiciário italiano, confirmando a validade e retidão do processo.

Sendo o refúgio ato vinculado, seu indeferimento pelo judiciário impele a extradição do réu, de acordo com o tratado de extradição existente entre Brasil e Itália. O asilo não seria viável em caso de crime comum, mas, por ser ato discricionário, seria o único instrumento que o governo teria para manter Battisti no Brasil, sem ter que prestar contas ao judiciário. No âmbito diplomático, essa atitude seria interpretada como tendo motivação ideológica, pois traz em si um caráter político. Se, de outra forma, o refúgio fosse concedido pelos órgãos jurídicos competentes para a análise da legislação, a decisão suavizaria essa motivação. Como isso não ocorreu, o problema voltou para o executivo.

O primeiro erro daqueles que queriam a permanência de Battisti no Brasil foi a tentativa de conceder a ele o estado de refugiado, pois não havia fundamento para isso em lei. Esse erro agravou-se ainda mais pelo fato de que, uma vez indeferido o refúgio, o STF votou pela sua extradição. Sabendo que a extradição se fundamenta ou na promessa de reciprocidade (que não necessariamente obrigaria um país a extraditar) ou em tratados bilaterais que obrigam as partes (como no caso de Brasil e Itália), percebe-se que a recusa da extradição de Battisti fere o Direito Internacional. Segundo Rezek, o compromisso de extradição recíproca assumida em tratado “priva o governo de qualquer arbítrio, determinando-lhe que submeta ao Supremo Tribunal Federal a demanda, e obrigando-o a efetivar a extradição pela corte entendida legítima” (REZEK, J. F. Direito Internacional Público: curso elementar . São Paulo: Saraiva, p. 203). Como o processo tem como fundamento um tratado, o costume não dá margem para uma decisão discricionária, pois todo o processo deve se fundamentar em lei. Essa posição foi reconhecida pelos ministros Gilmar Mendes, Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski. Dessa forma, o ato do presidente do Brasil no último ano de 2010 representa um atentado grave contra o costume e as leis internacionais, assim como uma afronta ao sistema jurídico não só da Itália como de toda a União Européia. O efeito diplomático de tal ato é extremamente desfavorável ao Brasil.

Por fim, pode-se perceber que a não extradição de Battisti não possui nenhum fundamento no Direito Internacional e se depreende de motivações ideológicas e políticas. O presidente que não fez uma crítica ao governo cubano pela perseguição de dissidentes políticos foi o mesmo que decidiu não extraditar um réu condenado por governos democráticos pelo assassinato de inocentes. A atribuição de poder discricionário ao presidente foi uma grande aventura do Supremo. Um dos argumentos utilizados foi o da “soberania”, que não faz sentido nos casos em que as decisões são regidas por tratados. Segundo o artigo 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos tratados de 1969, todos os tratados em vigor obrigam as partes. É o princípio do pacta sunt servanda . É claro que no âmbito internacional todo Estado é soberano, pois não há um governo mundial. São esses e outros princípios, porém, que fazem com que os governos respeitem os direitos humanos e construam relações harmoniosas, submetendo-se voluntariamente através de tratados e outros instrumentos de Direito, inclusive os estatutos das cortes internacionais. O que ocorreu não foi um ato soberano, mas um ato ideológico, praticado por um governo de esquerda que sempre aplicou dois pesos e duas medidas em suas relações externas. Para aqueles que ainda concordam com a decisão, pensem se manteriam essa opinião caso Battisti fosse um militante neofascista?